Papo furado, Poeminhas

Vencido

Das guirlandas
dê-me o fio
das plantas

O aparar de cheiro doce
da morte das flores.

Dos dosséis
dê-me o fio
com qual cortinam o corpo

o alvor dos lençóis
morbidez à XIX.

Dê-me a morte
docemente, aceito.

Que ela venha cheirosa,
elegante, serena,
roer-me os ossos.

Voltarei, então, à 1912.

Para acompanhar Dos Anjos,
o augusto, no não-sentir
roer-se

do derradeiro banquete.

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Papo furado, Poeminhas

Adolescência

Às vezes
me surpreendo jogando
uns futebóis
com os olhos

os dois
rolando mundo afora
enquanto penso.

Tanta coisa.

Um copo com vinho
tinto, meio frio, tudo isso.

Pego-me no quarto
pensando em você.

Serve The Servants – Nirvana
tamborilado nos dedos.

Particípio passado
do que acreditava
fosse emocionante.

Aos 13 anos.

Tão somente
deitado
sentado
na cama

sozinho
coçando a barba.

Por um átimo.

Um tempo atrás
tudo fazia sentido
nas minhas dúvidas.

É o tempo.

Olho em volta, então.

Levanto,saio.

Troco a noite pelo dia
do lado de fora

e deixo
a adolescência
dormir no travesseiro.

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Papo furado, Poeminhas

SANGUE FRIO

Quebre minha cara
me espanque
esfaqueie
dê pedrada

Esfregue
o meu rosto
pelo chão.

Roube dinheiro
meu cartão
a ilusão
minha namorada

chame mamãe de puta
e pai ladrão

Queime meu corpo
meu orgulho
minha paixão
me dê desgosto

humilhe cada pedacinho meu.

Mas por favor
brutalidade tem limite…

deixe a cachaça
o litro é como um filho meu…

Por favor
o sangue frio tem um limite,
amigão,

deixe a pitú
que eu fico aqui
feliz mais eu.

_______________________________

Musiquinha em homenagem aos meus amigos em geral, lirismo por lirismo, ausência dele, foi mal.

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Papo furado, Poeminhas

O dia da morte do criador e regente

Tuareg

disse deus

embolocando

o feitiço

tiço – que sentido

tem isso?

qué isso?

menino

praquêisso?

Pisco

e piscou mesmo

seus oitos olhos

de aranha

deus

de quelíceras

eternas

de venenos/amebas

subcutâneas

átrios-ventrículos

contraindo mais/mais

sem controle

deus

aranha-negra-armadeira

da sístole/diástole

espontânea.

Ahn?

Me diga

irmão:

não se espante

se não entender

motivo, sentido, praquê.

Santificado

em palavra nenhuma

metáfora

geração/criação

não há

o que se compreender.

Tuareg

disse novamente

deus

piscando dos oito

apenas sete.

Quem diria

que Ele estava ali

o tempo todo

na estante

olhando/regendo

tudo

em sua casa

entre o veludo

e o papel

de um livro gasto.

Eu, que fiz?

Fui ler.

Matei-o sem querer.

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Papo furado, Poeminhas

Cana

massacrado
a dentes
de engrenagem:

tristeza é sentir-se chaplin
fingindo a dor que se tem.

e tanto que se range
os dentes
de dentro do corpo

moendo à moenda
carnes e ossos

vendendo a nós nossos sumos
em copos de plástico
a um vintém.

endoidei
ontem à noite.

tenho consciência.

dormi sem flor nem essência:
bagaço de dor e ninguém.

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Papo furado, Poeminhas

Atitulado

Acordei
Maiakóvski:

pintando muros de vermelho,
decifrando nuvens.

[queria
desmontar meu esqueleto
verter minhas vértebras
em pífano]

Eu, racional
num momento,
pensei e dormi à coseno:

indo de um a um menos
eterno em me contradizer.

Queria ser máquina,
matemática, técnica,
alusões apologéticas,
mas sofro na visão pérfida
de alma apenas ser.

Tento transformar em fumaça
vomitando indústrias,
engolindo cânceres.

E lá nos pulmões
abro cancros
que acompanham o crescer
bambo e manco
da gaiola do peito a morrer.

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Contos

Uma noite, assim chuvosa, me enfiei na cama ensopado, e que cama mais gostosa.

Tava chovendo pra cacete, eu não conseguia dormir, não tinha nada que prestasse na tv, no rádio, a internet tava uma merda.

Até que pensei, Porra, eu quero ver o mundo. Mas não ficar na janela. Quer saber, foda-se.

Vou ver como as coisas estão mesmo lá fora.

Um homem precisa desafiar a natureza pelo menos uma vez na vida.

E nada melhor do que fazer isso quando se está entediado em seu apartamento no trilionésimo andar de uma torre de babel de gente alva, cheirosa e de vocabulário rico.

Isso aí.

Pus a cara na vidraça e o negócio tava mal pra caramba lá fora, tudo era uma nuvem cinzenta, fria, molhada, eu tava dentro de um algodão doce que trovejava. Puta merda.

Coloquei uma camiseta, calcei as primeiras sandálias que encontrei e dei o lavra.

O elevador sem música e tal, no espelho vi que minha cara até que não tava tão mal pra um insone desgraçado.

Lá embaixo, já dá pra imaginar, aquele inferno todo, água pra tudo quanto é lado, vento, árvores balançando, etc. Fiquei pra lá e pra cá. Bem, melhor que ficar vendo aquela massa cinza borrada lá de cima.

Até que cansei de molhar as canelas e fui prum toldinho branco que armaram lá embaixo, não sei pra quê.

E não é que me deparo com a loirinha Ana.

Oi, eu digo.

Oi, e ela tava com aqueles dois olhos bem vidrados nalguma coisa. Devia estar fumada.

Renato, ela disse.

Ok, vamos ao fatos, Renato não é nem nunca foi o meu nome, talvez ela tivesse confundido, qualquer coisa do tipo, mas eu dei corda, ver no que isso ia dar e tal.

Olá, eu disse, que chuva danada.

Pois é.

O que você tá fazendo por aqui?

Nada. Filosofando, ela disse.

Porra, imaginei, tá chapada.

Filosofando?

É.

No quê?

Na vida, no mundo, na chuva. Nunca mais tinha brincado de chuva.

Hum. Pois é, nem eu.

Záz, na hora rolou um relâmpago.

Viu?, ela disse, é isso que quero. A tempestade, a revolta.

Claro… E na mesma hora o trovão.

Pois é, ela disse. E você?

Eu to aqui. O tédio me consome, loirinha, sou um cara terrivelmente entediado. O mundo não suporta minha classe.

Hahaha, disse, irônica.

Pois bem, ficamos de papinho besta mesmo.  Ela disse que eu parecia que tinha o rei na barriga, então eu falei, claro, não só na barriga, eu sou, eu fui, eu vou, rei da coreia, do japão, da rússia, de Barishnikhov e Kalashnikhov, do marrocos. Sou um opulento rei islâmico-oriental-africano-que-não-suporta-a-vida-no-trilionésimo-andar-de-um-apartamento-pequeno-num-prédio-tão-grande-quanto-meu-título.

Ela olhava pra mim viajadona, com certeza tava fumada. Rimos um monte também. Sempre bom falar umas merdas. Eu me chapo também, loirinha, só pedir, ok?

Vamos pra piscina?

Porra, não tava a fim de nado, mas eu tava molhado mesmo.

Vamos, eu disse.

Bem, eu pensei, ela tá doidona, madrugada, tamos sozinhos, bem que dava pra rolar alguma coisa. Melhoraria uns mil por cento meu resto de noite.

Tirei minha roupa, fiquei só de cueca, mas poderia ter ficado nu, acho que ela nem ia notar, de tão doidona. Sei que ela entrou de pijama mesmo.

Ficamos nadando feito duas criancinhas e tal, aquela viadagem toda. Mas foi divertido.

Até que ela veio nadando até mim, pijama amarelo ensopado, olhos vidrados em alguma coisa que estava bem atrás da minha cabeça, bem atrás mesmo, afinal ela me encarava, mas pra mim ela não olhava, com certeza. Bem, me atravessava com olhar. Pensei, vem cá, loirinha, que vou te atravessar também, hahaha.

Então ela vem toda delicada, põe a mão por detrás da minha cabeça e empurra pra baixo.

Porra, não é que a pequenininha tem força?

Fiquei lutando por um tempo, achei que era brincadeira, sei lá, mas tava foda. Teve uma hora eu já tava quase me fu, então não tive outra escolha.

Me agarrei nas pernas da loirinha, apertei a bunda dela e mordi a coxa com força. Mas ela tava empurrando mais e mais minha cabeça pra baixo, não tava nem aí. Já tava sem ar.

Meti os braços pra cima e peguei nos braços da loirinha. Lutamos por mais um tempo, sei que consegui me safar, é lógico, como estaria dizendo essa paradinha para vossa mercê, né?

Fiquei tossindo que só a porra na beira da piscina. Ana, histérica, bolava pelo chão, rindo de não-sei-o-quê. Desgraçada.

Diabólica. Sei que fui pelas paredes, me guiando, pernas bambas, deixando aquele riso satânico de loirinha pra trás, até o elevador.

Cheguei em casa ensopado, quase recomposto. Tirei a cueca, atravessei o ap e me meti na cama, molhado mesmo.

Dormi feito uma pedra. Foi bom. Agradeço a Ana loirinha por isso.

O que é que um pouquinho de vida real não faz com suas disfunções do sono, não é mesmo?

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PS: escrevi essa brincadeira baseado no texto “nascido rei”, de Anny Stone. Espero que ela aceite na esportiva, rs.

http://desconcertopessoal.blogspot.com/2010/08/nascido-rei.html

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Contos

Sonho de grapefruit

Roxana sonhava frutas cítricas. E debulhava canções fúteis com doçura e acidez. Seu banho era ouvido por todos os apartamentos do seu prédio. Sua espera no ponto de ônibus era a estática e a estética  do encanto. Era a beleza, a ternura e o sonho enfiados em calças xadrez, moleton rosa e fones de ouvido. A capa dos desenhos no fichário dos braços, os lábios murmurando o pop, a arte.

Duas vezes viu na internet e disse que queria ter nascido nos 80. Mas suas células datavam de 96.

Roxana tinha os olhos de um azul quase roxo, e cabelos castanhos quase loiros.

E cada palavra que dizia era ornamentada pelos quases da adolescência. Quase gostava de Justin – Timberlake, TV ou Bieber. Quase via televisão e chorava, como quase ria no twitter e quase mostrou a rosura das laranjinhas inchadas na twitcam.

Roxana era apaixonada por dois meninos e uma menina. Mas não falava. Falava que tinha um lindinho urso pooh, mas na verdade sempre quis ter um maior.

Um dia Roxana pensou, e se eu fosse planta, qual seria?

Viu a mãe abrir com os dedos uma tangerina. Pediu um bago, que doce.

Mas no orkut viu a foto de alguém. Uma laranja vermelha por dentro, legendada “sonho de grapefruit”.

Grapefruit era o que queria ser.

Anotou no caderno, mudou todos os nicks possíveis: grapefruitrox.

Exibia-se suculenta, macia, minha vidinha linda em jpgs, phps e htmls.

Assim que eu a conheci. Minha perambulância pela internetosfera. Eu, sozinho, solteiro, esquecido. Me apaixono fácil demais. E pra morrer de amor é descascar toranja.

Só mandei scrap. Dei follow. Dei msn por direct message. Tão simpática, minha lua, minha ninfa.

Me escondo atrás de fakes. Ela visse meu rosto, meu peito? Morreria de medo. Pra ela sou Lucas, lu, sou de 95, ouço fresno, vejo two and a hal men e queria tatuar uma cidade no braço.

Passamos horas conversando. O que pulou meu coração quando perguntou, tem cam?

Vou comprar, eu disse.

Baixei uma fakewebcam e procurei vídeos de algum menino parecido com lu. Foi difícil. Não foi trabalho, queria muito ver minha Roxana ali pra mim, sozinha e toda, brincando de capricho com meus pedidos de mostra aqui, mostra ali.

Como dói lembrar.

Aqueles peitinhos, a barriguinha tão linda, a flor suculenta entre as coxas. E mostrava tudo tão rápido.

Todo dia isso, eu na covardia de mim, Lucas-fresno-two-and-a-half-men.

Mas hoje Roxana não entrou no msn. Hoje ela não atendeu o celular. Não atualizou o twitter. Fiquei vendo vídeos, tentando rir. Paro e me abuso, machuco, pra ver aquelas fotos, como o biquíni laranja modela aquela delicadeza. A florzinha debruçada na cama, rindo, nua como a vida. O que dizer daquele biquinho, da boquinha na webcam? Cadê, meu amorzinho?

Hoje não tem graça.

Olho as paredes, a pesada presença de nada no meu apartamento. Cada ponto da escuridão amalgamado no meu tédio. Eu, de tantos anos e décadas, sendo sugado pela efemeridade e devaneio de um bulbinho, recém-flor, sempre distante e pueril.

São quatro da manhã. Às seis tenho que estar em pé pra ir na firma. Com que cara? E esse vazio da garganta, do estômago, do peito?

Ah, meu sonho de grapefruit, fala comigo hoje, fala… Não sou nada sem você. Um dia te encontro, linda florzinha laranja. Um dia a gente se vê.

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Contos

Conversa, carinho, sábado de tarde, num dia frio.

Ô meu gatinho, o que mais me irrita é o vento. A gente depois de uma idade vai perdendo o rijo, vai ganhando um ranço. A pele vai enchendo de pinta. O vento bate e friu, haja frio. E é qualquer ventinho. Eu gosto de ficar no quintal, aguo as plantinhas, dou água pros cachorros, pros gatos, pros periquitos. Gosto de escutar o piadinho repetido deles, piá, piá, piá. Mas é só bater um ventinho pra eu ficar batendo banguela, o queixo cima-baixo, toda me tremendo, que nem pau verde.

Então eu puxo uma coberta no meu quartinho, vou pra poltrona e ligo a televisão. Mas só pra ouvir o murmurado mesmo, que não gosto de assistir. Ligo a televisão e me dano a fazer crochê. Corredor de mesa, lenço, cada coisinha linda que eu vendo pros vizinhos. Dá pra tirar um trocadinho, ajuda quando se depende da pensão do velho defunto, que era contínuo do jornal, ou seja, é bem pouquinha. Uma vez fiz uma capa linda, dos babadinhos e catotinhas, pra virgem santíssima da igreja daqui. Vou pra lá e eu já rezei tanto, já disse tanta missa que nem presto muita atenção, já sei tudinho de cor e salteado. Fico olhando a capa que fiz. Duas semanas de trabalho. Me enchendo de orgulho.

Eita pelinho bonito o seu. Depois dou uma bolinha pra você.

Hoje não tem missa. Eu fico em casa vendo os bichinhos, ralho com a gata célia, que só vive embaixo da mesa de jantar, ralho com o cachorro doguinha, porque ele é arteiro tanto, visse? Antes desse pessoal de hoje falar em estresse eu já sabia que isso era, ô se.

Meu filho Marinho veio ontem aqui. Deixou meu remédio, falou do menino dele, Otávio, que já tá na faculdade. Ciências Sociais. Não sei o que danado faz isso, mas se é faculdade, é importante. No meu tempo só tinha engenheiro, médico e advogado. Hoje é que fica essa variação toda, todo mundo quer dar pitaco em tudo, é invenção atrás de outra. Não gosto, mas o mundo não é gosto, é mundo. Gira só e a gente olha.

Gosto é gosto e eu tenho os meus. Um é fazer doce. Doce de abacate, de caju, de goiaba. Fazia tanto. Hoje nem me canso, mas dá vontade. Mas colher de pau acaba por lascar o braço. Mas eu sou boa doceira, visse? Otávio, menino, chupava os dedinhos se abrindo. Agora já é um moço, mas de vez em quando ele pede, “vozinha, faça um docinho que vou aí.” O bichinho. Bichinha de mim, que já tô só os pedacinhos, é o que digo pra ele. Fico triste de não poder agradar assim meu netinho.

Hoje é sábado. Dia infernal. É som alto, é bebedeira. A vizinhada no debunde e quando me veem é um tal de “bom dia, dona Neuza” pra cá, “boa tarde, vó”, pra lá. Nem respondo, pra não dizer uma coisa. Olha o forró, olha.

Pronto, começou a barulhada…

Já dá pra ouvir, né, meu gatinho? Se aninhe aqui no meu colo, vá, que começou a cachorrada.

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Contos, Velharias

Homo Sapiens Sapiens

Fecho a tampa. Ela se debate, se contorce, golpeia a parede furiosamente. Eu apenas assisto. Sinto o sofrimento sendo exalado de seu pequeno rosto. Para mim, perfume, néctar, como ela gostava, imagino. Observo cada movimento, cada batida deseperada e fico ponderando se ela não está pensando “eu poderia ter ferrado este idiota, que imbecil que eu fui!”. Involutariamente, um sorriso de malícia e crueldade se instala na minha face. Ela percebe, eu acho. Agora nos encaramos. Observo o seu ventre cansado, mostrando-se a mim na parede transparente. Também me canso. Balanço várias vezes até ter certeza de que ela estava morta. O corpo da abelhinha fica contraído, molhado pelo resto de refrigerante acumulado no fundo da garrafa de guaraná antarctica. Peço a conta finalmente. Saio do restaurante empoierado de barriga cheia e cheio de mim. Sou predador. O topo da cadeia alimentar. Respiro fundo, triunfante.

Na rua, reflexões: seres humanos exercendo o seu poder sobre o restante dos animais, e sobre outros humanos também, simiescos humanos, e assim que penso isso passa um homem, braços fortes, arrastando uma enorme carroça de lixo. Vai rápido, puxando com graciosidade todo o peso das tralhas que catara a manhã inteira, imagino. Tem um rosto impassível, de lutador, ameaçador. Conto as moedinhas na minha mão, conferindo a passagem para o ônibus. Esses metaizinhos que eu contava valiam toda a manhã daquele cidadão. Pensar na vida e olhar os letreiros nos coletivos, lugares que não serviam para mim, que serviam, mas estavam cheios, gente subindo e descendo. O meu ônibus chega, ponho a mão para rua e ele para quase subitamente. No lixeiro ao lado do poste, moscas. Moscas, ratos, abelhas, macacos. Fumaça, calçadas, capim. Embalagens, latas, crianças. Amor, trabalho, vida. Abro um livro, Maravilhas do conto latino-americano, e leio “A caça da serpente” de Arturo Ambrogi, El Salvador. No conto, uma cobra que preparava uma galinha para ser deglutida e digerida em uma sesta revigorante e majestosa é surpreendida por um grupo de caçadores, urbanos homens, guiados por um índio no enorme milharal. Um tiro. A sepente corre para a plantação, ferida de morte. Os homens vão embora, recuperados do susto. A galinha fica abandonada, enzimas em sua superfície, esperando a digestão que não acontecerá mais. Antes de descer do ônibus, olhando furtivamante para um decote, penso no carroceiro, suor em sua pele, esperando a serpente. A serpente.

Em casa, o que é um bom veneno? Controle remoto em punho, a televisão não ajuda. Em cima da geladeira, paracetamol, dipirona, luftal, bolachas cream cracker, um panfleto de vendedor de gás. Ela deixou almoço pronto, eu disse que iria almoçar na rua. No banheiro, o que é um bom veneno? Há uma vasta gama de opções, não tenho coragem de beber nada, água sanitária nem pensar, tem cheiro de esperma, muito menos detergente, o cheiro me deixa enjoado, xampu não, tem consistência de novalgina ou mel. Não defeco, não me masturbo, não escovo os dentes. Não há nada para se fazer. A tarde é longa.

Estou deitado na cama. Escuto ela entrar em casa. Finjo que não percebo, viro o corpo para o lado, simulando sono. Ela não quer me incomodar, os meus olhos semicerrados, olho o relógio na parede, três e dezesseis, “Oi, querida, já chegou?”, Ela tem um corpo interessante, uma barriga que é quase grande, seios que escorrem do busto, apontando para frente com sutileza, estrias também sutis, que zebram a parte posterior de suas grossas coxas, uma dobrinha de gordura no pescoço, que eu acho um charme, cabelos tingidos de vermelho, olhos de breu, que me dão vertigem ao fitá-los, pois parecem o fundo de um abismo de terror. Lábios fino, dentes um pouco para frente, sendo um dos incisivos levemente torto para a esquerda, porém isso dá um ar de existência e dignidade ao seu sorriso. Constatei que a minha admiração não tinha tamanho, “Cheguei”, Ela respondeu, “como foi hoje? Nada?”, “Nada”, odeio o desemprego só por causa dessa pergunta. Vida.

Sapiens,  sou sábio. E as reflexões percorrem meus neurônios com a inconstância da minha própria existência. Eu me agarro a Ela na cama, Ela diz que está cansada, eu mordo a sua nuca, Ela enfia suas unhas nas minhas costas, bafeja na minha orelha, a penugem leve dos seus braços se eriça. Vida. Cravo-lhe mordidas, Ela me responde com fúria. Cheios de mãos e pescoços. Cheios de nós. De nós e de nós, pronome e substantivamente orientados. Somos carne, sangue, calafrios, fluidos, fluidos, palavras. Olho para o seu rosto. Dois abismos de terror saltam sobre mim. Vida. Somos ira.

Ela não me responde. Eu não faço mais perguntas. Ela ainda me observa. Eu não me escondo. Enzimas, o suor escorrendo pelo meu pescoço, pelas minhas costas. Ofegante, respiro fundo. Vou até o banheiro, sorvo a garrafa de detergente, vomito várias vezes. Sinto que a minha língua engrossa. Vomito no corredor, em frente ao quarto. A porta aberta. Ela ainda olha para onde eu estava parado. Ela não respira, sangue no canto de sua boca. A janela aberta. Uma mosca entra. Pousa em seu seio. Fico de pé na cama. O inseto voa, pousa no filete que sai da boca da Minha Querida. Os olhos ainda abertos, abismos de terror, a mosca pousa em um deles. Lá fora, lá embaixo, transeuntes. Décimo andar. Um salto sobre a existência. Mergulho, o vento perpassa minhas nuances, ensurdece os meus ouvidos. Um abismo iluminado pelas luzes da noite que chega, o laranja da poluição no céu do crepúsculo. Sapiens.

Queria acordar no inferno, mas acordo ao lado dela. A noite já alta, a janela aberta, refrescando o nosso quarto. Sua bunda faz um desenho muito bonito quando ela está deitada, posição fetal, as pernas encolhidas. Observo a rua lá embaixo. Vou ao criado mudo e cato um cigarro, ela sempre deixa uma carteira lá, mas quase não fuma. Eu também não fumo muitos cigarros. Não sei o porquê deste costume. Deve ser porque não temos filhos. A brasa entre os meus dedos, as nuvens arroxeando o céu, amarelo, vermelho, verde, branco, cinza, preto, é o mundo que se desenha em luzes e sombras abaixo de mim. Vivo? O topo. Até o cigarro terminar, pondero se estou vivo ou morto. A fumaça me mostra que ainda sou eu. Preciso sair.

Não sei por que eu caço. Não sei se é a vontade de ser vencedor, ou o medo de ser para sempre um perdedor, ou a busca para algum significado além dos que eu já conhecia. Procuro dinheiro na bolsa dela. Ela sempre tem, eu sempre roubo, ela sempre reclama. Cinquenta reais. Ela ainda dorme. Não faço barulho. Cachimbo no bolso. Dá-me uma curiosidade de saber as horas, mas não o faço. Não me importa. Venço dois quarteirões de caminhada. O caos, carros ainda passam aos montes. Sete da noite, talvez. Ainda tenho muito tempo até que ela me encontre. O magro encostado na parede, meninas e meninos ao seu redor. Ele me vê, “Eu quero duas”, e passo a nota para ele, quarenta de troco, cachimbo na mão. Crack crack, faz a primeira pedrinha em combustão, crack, crack, eu sou o homem mais forte do mundo, porra! Aspiro fundo, eu sou o topo, a pedrinha é consumida, respiro fundo, crack crack faz a segunda, silvo, solto um grito, devolvo o isqueiro para o magro, até mais. Mais.

Sigo pelo quarteirão. Tusso, coço meus braços, talvez mosquitos tenham me picado. Quarenta reais ainda, me seguro para não comprar mais pedrinhas. A coceira aumenta, uso as unhas sem dó, até os meus braços arderem, até eles verterem uma pequena quantidade de sangue. Sento abaixo da marquise de uma loja fechada. O vento batendo nas minhas feridas, fazendo-as arder, arder. Olho para a direita e Cibele está lá. Vou logo ao encontro de Cibele, ela me cumprimenta, não tenho muito tempo, Ela já está me procurando, eu acho. “Vinte o boquete”, e subimos a escada suja que leva aos quartinhos, e eu sento na cama de cimento, Cibele apertando as minhas bolas, percorrendo sua língua pelo meu ventre, a barba dela nascendo, arranhando de leve a minha pele. Refestela-se com o meu gozo. Suja o seu rosto com minha porra, eu sorrio. Dou um soco forte na sua cara, ela grita, surpreendida e eu chuto o seu rosto, aproveitando o corpo dela curvado, bato na cara com os pés, com as mãos com os cotovelos, até ela se tornar uma papa vermelha, até ela borbulhar de sangue. Cibele é frágil. Deitada no chão, o sangue coagulando no chão do muquifo. Pulo duas vezes sobre a sua cabeça. Tiro o dinheiro que está escondido no seu seio. Ela não responde.

Na rua, encontro o magro novamente. Estou sujo de sangue. “O que foi isso?”, ele pergunta e eu dou duas notas de dez, uma de vinte e duas de cinco. Dez pedrinhas que escondo no bolso. Peço emprestado o isqueiro, “amanhã te devolvo”. Vou caminhando para casa, adrenalina pulsando forte. Sapiens, adrenalina escorreria pelo meu corpo se eu fizesse agora uma lobotomia. Dez andares, Ela acordou? Vou pela escada de incêndio, paro entre o terceiro e o quarto andar. Fumo cinco pedrinhas, crack, crack, crack, crack, um cheiro forte nas escadas, eu tenho a sensação de que meus dentes estão trincados. Corro, sou o homem mais forte do mundo, porra! Venço os andares também. Estou empapado de suor, sem ar, enzimas. Abro a porta. Tudo escuro. Vou até o quarto. Ela ainda dorme. Beijo o seu pescoço frio, sua pele fria, um pouco rija, suas pernas não se movem facilmente, deve ser a janela aberta, o frio entrando pelo quarto. A bunda dela ainda mantém o desenho lindo. Me excito. Vou ao criado mudo e cato uma tesoura. Corto o seu short. Viro um pouco o seu corpo e contemplo a sua vagina. Brinco um pouco com os dedos e a sinto intumescer. Lambo o corpo dela, como a serpente que comeria a galinha, até os caçadores chegaram. Olho o relógio, mas está escuro demais. Ouço a sua voz, me chamando baixinho. Vida. Não há caçadores hoje. Sou predador. O topo da cadeia alimentar. Respiro fundo, triunfante.

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