Fecho a tampa. Ela se debate, se contorce, golpeia a parede furiosamente. Eu apenas assisto. Sinto o sofrimento sendo exalado de seu pequeno rosto. Para mim, perfume, néctar, como ela gostava, imagino. Observo cada movimento, cada batida deseperada e fico ponderando se ela não está pensando “eu poderia ter ferrado este idiota, que imbecil que eu fui!”. Involutariamente, um sorriso de malícia e crueldade se instala na minha face. Ela percebe, eu acho. Agora nos encaramos. Observo o seu ventre cansado, mostrando-se a mim na parede transparente. Também me canso. Balanço várias vezes até ter certeza de que ela estava morta. O corpo da abelhinha fica contraído, molhado pelo resto de refrigerante acumulado no fundo da garrafa de guaraná antarctica. Peço a conta finalmente. Saio do restaurante empoierado de barriga cheia e cheio de mim. Sou predador. O topo da cadeia alimentar. Respiro fundo, triunfante.
Na rua, reflexões: seres humanos exercendo o seu poder sobre o restante dos animais, e sobre outros humanos também, simiescos humanos, e assim que penso isso passa um homem, braços fortes, arrastando uma enorme carroça de lixo. Vai rápido, puxando com graciosidade todo o peso das tralhas que catara a manhã inteira, imagino. Tem um rosto impassível, de lutador, ameaçador. Conto as moedinhas na minha mão, conferindo a passagem para o ônibus. Esses metaizinhos que eu contava valiam toda a manhã daquele cidadão. Pensar na vida e olhar os letreiros nos coletivos, lugares que não serviam para mim, que serviam, mas estavam cheios, gente subindo e descendo. O meu ônibus chega, ponho a mão para rua e ele para quase subitamente. No lixeiro ao lado do poste, moscas. Moscas, ratos, abelhas, macacos. Fumaça, calçadas, capim. Embalagens, latas, crianças. Amor, trabalho, vida. Abro um livro, Maravilhas do conto latino-americano, e leio “A caça da serpente” de Arturo Ambrogi, El Salvador. No conto, uma cobra que preparava uma galinha para ser deglutida e digerida em uma sesta revigorante e majestosa é surpreendida por um grupo de caçadores, urbanos homens, guiados por um índio no enorme milharal. Um tiro. A sepente corre para a plantação, ferida de morte. Os homens vão embora, recuperados do susto. A galinha fica abandonada, enzimas em sua superfície, esperando a digestão que não acontecerá mais. Antes de descer do ônibus, olhando furtivamante para um decote, penso no carroceiro, suor em sua pele, esperando a serpente. A serpente.
Em casa, o que é um bom veneno? Controle remoto em punho, a televisão não ajuda. Em cima da geladeira, paracetamol, dipirona, luftal, bolachas cream cracker, um panfleto de vendedor de gás. Ela deixou almoço pronto, eu disse que iria almoçar na rua. No banheiro, o que é um bom veneno? Há uma vasta gama de opções, não tenho coragem de beber nada, água sanitária nem pensar, tem cheiro de esperma, muito menos detergente, o cheiro me deixa enjoado, xampu não, tem consistência de novalgina ou mel. Não defeco, não me masturbo, não escovo os dentes. Não há nada para se fazer. A tarde é longa.
Estou deitado na cama. Escuto ela entrar em casa. Finjo que não percebo, viro o corpo para o lado, simulando sono. Ela não quer me incomodar, os meus olhos semicerrados, olho o relógio na parede, três e dezesseis, “Oi, querida, já chegou?”, Ela tem um corpo interessante, uma barriga que é quase grande, seios que escorrem do busto, apontando para frente com sutileza, estrias também sutis, que zebram a parte posterior de suas grossas coxas, uma dobrinha de gordura no pescoço, que eu acho um charme, cabelos tingidos de vermelho, olhos de breu, que me dão vertigem ao fitá-los, pois parecem o fundo de um abismo de terror. Lábios fino, dentes um pouco para frente, sendo um dos incisivos levemente torto para a esquerda, porém isso dá um ar de existência e dignidade ao seu sorriso. Constatei que a minha admiração não tinha tamanho, “Cheguei”, Ela respondeu, “como foi hoje? Nada?”, “Nada”, odeio o desemprego só por causa dessa pergunta. Vida.
Sapiens, sou sábio. E as reflexões percorrem meus neurônios com a inconstância da minha própria existência. Eu me agarro a Ela na cama, Ela diz que está cansada, eu mordo a sua nuca, Ela enfia suas unhas nas minhas costas, bafeja na minha orelha, a penugem leve dos seus braços se eriça. Vida. Cravo-lhe mordidas, Ela me responde com fúria. Cheios de mãos e pescoços. Cheios de nós. De nós e de nós, pronome e substantivamente orientados. Somos carne, sangue, calafrios, fluidos, fluidos, palavras. Olho para o seu rosto. Dois abismos de terror saltam sobre mim. Vida. Somos ira.
Ela não me responde. Eu não faço mais perguntas. Ela ainda me observa. Eu não me escondo. Enzimas, o suor escorrendo pelo meu pescoço, pelas minhas costas. Ofegante, respiro fundo. Vou até o banheiro, sorvo a garrafa de detergente, vomito várias vezes. Sinto que a minha língua engrossa. Vomito no corredor, em frente ao quarto. A porta aberta. Ela ainda olha para onde eu estava parado. Ela não respira, sangue no canto de sua boca. A janela aberta. Uma mosca entra. Pousa em seu seio. Fico de pé na cama. O inseto voa, pousa no filete que sai da boca da Minha Querida. Os olhos ainda abertos, abismos de terror, a mosca pousa em um deles. Lá fora, lá embaixo, transeuntes. Décimo andar. Um salto sobre a existência. Mergulho, o vento perpassa minhas nuances, ensurdece os meus ouvidos. Um abismo iluminado pelas luzes da noite que chega, o laranja da poluição no céu do crepúsculo. Sapiens.
Queria acordar no inferno, mas acordo ao lado dela. A noite já alta, a janela aberta, refrescando o nosso quarto. Sua bunda faz um desenho muito bonito quando ela está deitada, posição fetal, as pernas encolhidas. Observo a rua lá embaixo. Vou ao criado mudo e cato um cigarro, ela sempre deixa uma carteira lá, mas quase não fuma. Eu também não fumo muitos cigarros. Não sei o porquê deste costume. Deve ser porque não temos filhos. A brasa entre os meus dedos, as nuvens arroxeando o céu, amarelo, vermelho, verde, branco, cinza, preto, é o mundo que se desenha em luzes e sombras abaixo de mim. Vivo? O topo. Até o cigarro terminar, pondero se estou vivo ou morto. A fumaça me mostra que ainda sou eu. Preciso sair.
Não sei por que eu caço. Não sei se é a vontade de ser vencedor, ou o medo de ser para sempre um perdedor, ou a busca para algum significado além dos que eu já conhecia. Procuro dinheiro na bolsa dela. Ela sempre tem, eu sempre roubo, ela sempre reclama. Cinquenta reais. Ela ainda dorme. Não faço barulho. Cachimbo no bolso. Dá-me uma curiosidade de saber as horas, mas não o faço. Não me importa. Venço dois quarteirões de caminhada. O caos, carros ainda passam aos montes. Sete da noite, talvez. Ainda tenho muito tempo até que ela me encontre. O magro encostado na parede, meninas e meninos ao seu redor. Ele me vê, “Eu quero duas”, e passo a nota para ele, quarenta de troco, cachimbo na mão. Crack crack, faz a primeira pedrinha em combustão, crack, crack, eu sou o homem mais forte do mundo, porra! Aspiro fundo, eu sou o topo, a pedrinha é consumida, respiro fundo, crack crack faz a segunda, silvo, solto um grito, devolvo o isqueiro para o magro, até mais. Mais.
Sigo pelo quarteirão. Tusso, coço meus braços, talvez mosquitos tenham me picado. Quarenta reais ainda, me seguro para não comprar mais pedrinhas. A coceira aumenta, uso as unhas sem dó, até os meus braços arderem, até eles verterem uma pequena quantidade de sangue. Sento abaixo da marquise de uma loja fechada. O vento batendo nas minhas feridas, fazendo-as arder, arder. Olho para a direita e Cibele está lá. Vou logo ao encontro de Cibele, ela me cumprimenta, não tenho muito tempo, Ela já está me procurando, eu acho. “Vinte o boquete”, e subimos a escada suja que leva aos quartinhos, e eu sento na cama de cimento, Cibele apertando as minhas bolas, percorrendo sua língua pelo meu ventre, a barba dela nascendo, arranhando de leve a minha pele. Refestela-se com o meu gozo. Suja o seu rosto com minha porra, eu sorrio. Dou um soco forte na sua cara, ela grita, surpreendida e eu chuto o seu rosto, aproveitando o corpo dela curvado, bato na cara com os pés, com as mãos com os cotovelos, até ela se tornar uma papa vermelha, até ela borbulhar de sangue. Cibele é frágil. Deitada no chão, o sangue coagulando no chão do muquifo. Pulo duas vezes sobre a sua cabeça. Tiro o dinheiro que está escondido no seu seio. Ela não responde.
Na rua, encontro o magro novamente. Estou sujo de sangue. “O que foi isso?”, ele pergunta e eu dou duas notas de dez, uma de vinte e duas de cinco. Dez pedrinhas que escondo no bolso. Peço emprestado o isqueiro, “amanhã te devolvo”. Vou caminhando para casa, adrenalina pulsando forte. Sapiens, adrenalina escorreria pelo meu corpo se eu fizesse agora uma lobotomia. Dez andares, Ela acordou? Vou pela escada de incêndio, paro entre o terceiro e o quarto andar. Fumo cinco pedrinhas, crack, crack, crack, crack, um cheiro forte nas escadas, eu tenho a sensação de que meus dentes estão trincados. Corro, sou o homem mais forte do mundo, porra! Venço os andares também. Estou empapado de suor, sem ar, enzimas. Abro a porta. Tudo escuro. Vou até o quarto. Ela ainda dorme. Beijo o seu pescoço frio, sua pele fria, um pouco rija, suas pernas não se movem facilmente, deve ser a janela aberta, o frio entrando pelo quarto. A bunda dela ainda mantém o desenho lindo. Me excito. Vou ao criado mudo e cato uma tesoura. Corto o seu short. Viro um pouco o seu corpo e contemplo a sua vagina. Brinco um pouco com os dedos e a sinto intumescer. Lambo o corpo dela, como a serpente que comeria a galinha, até os caçadores chegaram. Olho o relógio, mas está escuro demais. Ouço a sua voz, me chamando baixinho. Vida. Não há caçadores hoje. Sou predador. O topo da cadeia alimentar. Respiro fundo, triunfante.